CATALOGRAFIAS

Catalografias é o título do livro a que nos dedicamos nestes últimos dois anos em reuniões bastante espaçadas considerando-se os compromissos cotidianos de cada uma, de modo que só agora concluímos este projeto que esperamos ser somente o primeiro a que nos queremos arriscar.
Trata-se de uma compilação de contos e fotografias inspirados pela cidade do Rio de Janeiro, dentre os quais, em alguns casos os contos inspiraram as fotos e em outros o inverso se deu.
As fotos que ilustram o projeto são das mais variadas datas e fazem parte do vasto acervo de belíssimos trabalhos da Márcia, fotógrafa, artista plástica, colorida e louca o suficiente para topar essa idéia de vir parar por aqui.
Já os contos foram escritos entre 2001 e 2009, frutos de uns desvarios e audácias minhas e selecionados para a temática proposta, dentre meu breve e pretensioso acervo.
No fim das contas o que conta é que nós duas estamos muito satisfeitas com o resultado que aqui principiamos a apresentar.
Contudo não será aqui que os interessados desfrutarão da leitura da complitude da obra. Este espaço do blog, arquitetamos para fomentar conversas e receber as reações dos que pelo livro se aventurarem lá no quando por fim estiver disponível (fiquem calmos, será muito em breve), com os sete contos e as fotos na íntegra.
Aqui, para uma provinha apenas, postamos por enquanto dois dos contos e fotos.
Esperamos deixá-los com vontade de saborear prato principal e sobremesa e aguardamos ávidas por elogios, críticas, sugestões, espinafradas, manifestações entusiasmáticas, odes, declarações de amor ou de ódio, o que der na telha de quem quiser aqui estar.
Dito isto, ficam postados então os dois trabalhos prometidos, e também nosso e-mail para caso falte aqui espaço para tudo a que nos propomos neste blog: projetoslivrescos@gmail.com.
Um abraço
Marcella Aôr

O último fôlego


Não houve vida inteira que lhe passasse diante dos olhos. Diferente de todos os lugares comuns que ouvira, não houve o primeiro dia de aula dos filhos ou suas formaturas, não houve o dia de seu casamento, ou o nascimento da primeira neta. Aos oitenta e três anos, quando tomou seu último fôlego, sem saber que era o último, mas suspeitando que fosse, fechou os olhos, puxou com a força que lhe sobrava o ar que lhe restava e não houve nada dessas coisas.
Sozinha, numa tarde qualquer da semana, na poltrona costumeira das horas de crochê, com os olhos fechados durante o breve instante da última respiração foi o olfato, o derradeiro sentido a preencher-lhe a alma que partia.
Lembrou a maresia que lhe adentrara as narinas moças muitos anos antes, numa tarde perdida da memória pelos vãos de acontecimentos no tempo que transcorreu até ali. Um vento calmo e ousado alcançou-lhe no alto do Outeiro da Glória, trazendo o perfume de mar que tanto a enjoava, durante o passeio familiar numa tarde de sábado do ano de 1938.
Tinha então quinze anos e aos sábados a rotina de passeios vespertinos com seus pais e a irmã mais nova, à época com quatro.
Não poderia ter sido melhor seu último suspiro. Estava exultante em ter conseguido, sessenta e oito anos depois, resgatar aquele cheiro, aquele lugar, aquele rosto, aquele sorriso.
Não sentia agora enjôo algum. A maresia aos oitenta e três era finalmente doce.
De olhos fechados e narinas mareadas, reviu a pia do outeiro onde naquela tarde secretamente molhou os dedos aproveitando um instante em que seus pais, distraídos dela, ocupavam-se com a mais nova. Olhou em volta, a ver se alguém notara sua transgressão e assustou-se deixando escapar um som que chamou de volta seus pais à razão de sua presença. Olhou para outro lado. Olhou para o chão, para o teto, para os azulejos, para lugar nenhum.
Com medo, secou as pontas dos dedos na barra do vestido com uma pressa indisfarçável e, enquanto sentiu que seu pai ainda procurava a causa do susto, evitou a direção de antes.
Tão logo achou que podia, olhou de novo, com a mesma pressa que teve em secar os dedos. Tentou parecer calma, mas não podia. O coração palpitava como não era apropriado a uma moça de família, aos quinze anos e durante um passeio familiar vespertino especialmente.
Era de tudo um pouco. De tudo, um pouco de medo, um pouco de vergonha, um pouco de um calor para o qual não registrara código ainda, um pouco de gosto. Gosto porque das palavras prazer e gozo não conhecia.
Era um rosto proibido a olhar para ela. Uma barba rabiscada de leve, por fazer, olhar apressado, suspeito, cúmplice. Um rosto menino de um homem que a viu molhar em segredo as pontas dos dedos.
O pai, desconfiado, pôs-lhe os olhos fixos, de modo a não perder um canto para onde se virasse o rosto da filha mais velha. Viu afinal o menino homem. Puxou feroz a filha pelo braço, olhou com fúria para a esposa e, sem dizer palavra, ordenou que pegasse a mais nova. Iriam embora imediatamente.
Sujo! Exclamou em voz baixa para a mulher. Com cara de comunista, acrescentou com vergonha ao pronunciar a designação. Seguiu enfurecido balbuciando comentários políticos, éticos e morais e reclamando sem fim. Foram embora.
O susto ao ver quem a viu com os dedos na pia, foi suspeitar de que seria essa a opinião do pai sobre o rosto menino. Era um rosto proibido. Era um rosto lindo e ela, enquanto o pai a puxava pelo braço com força e pressa, olhou para trás ainda uma vez a buscá-lo.
No vazio de vê-lo de novo, suspirou, sessenta e oito anos depois e pela última vez.

Namoricos

Aquele cara que era lá do colégio, está namorando a Gávea. Como é mesmo o nome dele? Pedro? Isso, Pedro. Nossa, há quanto tempo não nos vemos. Quer dizer que, pelas novas, ele agora é namorado da Gávea?! Pedro da Gávea.
Os dois se divertem. Nas primeiras horas do dia ele escala a pedra, acarinhando cada canto com afeto matinal até chegar ao topo, onde se aconchega e admira seu amor e sua vizinhança. Às vezes, depois do almoço, conversam durante horas tomando um café ou vão ao teatro de mãos dadas e a noite, que aos amantes pertence, o encontro no baixo para uma cerveja.
Comentam que Pedro tem um caso com a Lapa, mas a Gávea não se importa. O que são sextas e sábados, quando de Segunda à Quinta é só dela e de mais ninguém?
Pedro se orgulha da Segunda sem lei, convida os amigos , exibe a namorada e posa de anfitrião acompanhando-a até de manhãzinha para depois descansarem juntos, um no colo do outro.
Triste ficou foi a princesinha do mar, que flertava com ele há meses. Vive agora de ressaca, afogando salobra as mágoas de um amor em silêncio. Que o digam as pedras portuguesas... o calçadão virou um pouco muro de lamentações.
Quem contou foi a Bia, que tem uma amizade colorida com os boatos e que soube pela Catarina, prima irmã do velho ditado "quem conta um conto..." Então, vai saber.
Fofocas de lado, o que vale é que lá estão Pedro e a pedra da Gávea, Bia colorindo boatos, Catarina e os pontos dos contos e Copacabana toda chorosa. E eu? Ai que vontade de um romance estapafúrdio! O Leblon casou-se com Ipanema ao som dos famosos poetas e uniram-se pelo mar que não tem quem os separe. Será que o Humaitá está solteiro?