Um pouco confusa...

Não tenho certeza se hoje era eu quem deveria escrever ou a Márcia. Furei um domingo desses pq estava gripada e em meio a lenços de papel e corpo mole, acabei me esquecendo da tarefa....
Enfim, se hj é dia da Márcia, logo ela pinta por aqui e este será um domingo de compensação das faltas , com duas novas postagens.
Antes porém, quero dizer que não desistimos de lançar o livro na íntegra, mas percebo agora que talvez tenhamos nos antecipado em prometê-lo. Isso pela maneira que o idealizamos e queremos... Estamos esperando uma revisão e o prefácio de uma amiga querida, mas no meio do caminho tivemos casamento, compra e venda de imóvel, gripe, trabalho, COPA DO MUNDO(...) holandeses de merda(...) e eu ainda me meti numa obra!
Aproveito inclusive para pedir desculpas à Márcia e à Carol, nossa amiga querida e colaboradora fundamental, pelo afastamento e para dizer que foi completamente involuntário e por pressão das circunstâncias. Desculpas, meninas.
Bom, mas agora vamos lá...
Este ano teve um concurso de contos cujo tema era "o que você espera dos próximos 150 anos?"
AAAAARRRRRGGGGHHHHHHH! Diante de um tema assim tão ... tão... ah, não sei, tão fechado, tão limitado e direto, relutei em me inscrever até a véspera, quando resolvi sentar diante do computador e arriscar alguma coisa.
Saiu isso que deixo hj aqui: "Futuros e presentes" e fico esperando as opiniões sincers e diretas dos que as quiserem dar.
Até daqui a 15 dias. Um abraço.



Futuros e presentes



Sentada na bancada de madeira sob a janela, com uma xícara fumegante nas mãos, enquanto admirava a chuva do outro lado do vidro, sentiu-se americana.
A bancada foi feita a partir de desenho seu e a contragosto do arquiteto que lá pelo fim de toda a confusão da reforma, por causa de um capricho, tivera que achar um jeito de encaixar no projeto aquela porcaria de bancada. A inspiração era de fato americana, dos filmes e ultimamente séries de TV a que tinha passado a dedicar atenção algumas boas horas de seus dias. Na xícara fumegante por sorte havia apenas chá. Fosse chocolate quente com mini marshmalows, diria “hi darling” ao marido quando entrasse no quarto, no lugar de um simples “boa noite, amor”.
Por sorte somente chá e por sorte uma xícara, porque se caneca fosse...
Ali, na bancada ao olhar a chuva, os filhos já crescidos, a vida de todo dia, sentindo alguma estrangeirice, não conseguia esquecer o homem furioso daquela tarde no meio da rua.
A barba, os berros, a raiva,a afronta naquela acusação e a vontade de acabar com a raça dele bem ali, na frente de todo mundo. Não chegou a querer matar o infeliz, não, na verdade, não sabia exatamente o que estava com vontade de fazer, só pensava na expressão assim bem pura “acabar com a raça dele”. E uma raiva que ia subindo dentro dela e contra aqueles gritos, mas não deu em nada. Deixou escapar uma gargalhada que forçava um pouco de deboche e desdém e olhou em volta, sacudindo a cabeça, dizendo: Maluco!
Por vergonha só e como quem ri exagerado de si quando cai na frente dos outros, saiu apressada dali ainda balançando a cabeça e fingindo ter achado graça do episódio, caso alguém estivesse olhando.
Agora, em casa, chuva lá fora, sozinha até que voltem todos para o jantar, revia os olhos esbugalhados do homem enfurecido: Dondoca, tem mais gente no mundo além de tu, viu?! Tá pensando que é dona disso aqui ó (e girava apontando tudo e nada ao mesmo tempo). Nada disso é só seu não! Nada disso é de um só. Tá pensando o que, amanhã tu morre, problema teu, mas o mundo continua e tem aí mais um bando de gente pra viver nele! Hoje é um lixinho na rua, amanhã isso aqui vira um aterro sanitário, madame! Lixo leva tempo pra partir, dona! (isso já aos berros).Você ainda dura o que? Uns vinte, trinta anos? Isso aí ó, até sumir, mais uns cem, cento e cinqüenta...
Parada, atônita, sem certeza completa de que ele falava com ela, continuou ali ouvindo aquela bronca dessas como a tempos não ouvia. Não sei eu exatamente porque, e talvez nem ela saiba, mas ficou ainda mais um pouco, enquanto ele continuava a bradar: Cento e cinqüenta?! E daí, né?! Tu num vai ta aqui mesmo, que se dane! Então é só isso, bonitinha? É só hoje? E amanhã, e depois, e os próximos cento e cinqüenta anos?
Chega! Alguma coisa dentro dela exclamou. Fingiu seu estado de surpresa e confusão na gargalhada breve e debochada e bateu em retirada com a cabeça balançante, dizendo:Maluco!
Era mesmo só um lixinho. Caiu da bolsa, na verdade. Não foi um ato deliberado ou mal intencionado. Foi sem intenção nenhuma, acidental.
O chão imundo, cuspe, uma água qualquer muito da suspeita, cocô sabe-se lá se de gente ou de cachorro, e um monte de outros pequenos lixinhos.
Sentiu sim um incômodo ao deixar cair da bolsa alguma coisa que nem prestou muita atenção no que era, mas, não sendo uma nota de valor considerável, nunca pensaria em resgatar daquela imundice o que quer que tenha sido se já num relance percebeu não ter valor ou importância.
Dinheiro de valor considerável não era porque não andava com isso na carteira. Fosse um telefone, uma anotação importante, não teria deixado soltos na bolsa, de modo que pudessem cair à toa. Certamente era uma nota de compra feita durante aquele dia ou aquela semana, pois tinha o hábito de jogar esses papeizinhos na bolsa para depois dar cabo de tudo em casa, com calma.
Irônico é que juntava no fundo da bolsa esses pequenos restos das tarefas diárias, justamente para não jogar nada por aí, no chão, a sujar a rua. Tudo ficava lá esquecido até que encontrasse uma lata de lixo ou que tivesse tempo em casa para rever cada um dos papéis, inventar relevância temporária para alguns e jogar o que sobrasse fora apropriadamente.
Acontece que ninguém está livre, todos sabemos, de um crime ambiental vez por outra.
Mais uma vez, como outras tantas passadas e algumas outras por vir com certeza, hoje foi a vez dela e justo por ali onde de guarda estava o mendigo insano e ensandecido nos cuidados com o planeta e o futuro e o lixo dos outros.
Podia não ter dado a mínima, mas não, não pode.
Todos já de volta e depois do jantar continuavam ecoando aqueles cento e cinqüenta anos pela frente.
Queria também um mundo lindo, com pessoas lindas e ruas limpas e comida orgânica, e netos fortes e inteligência coletiva e sustentabilidade e tudo aquilo que todo mundo quer ou diz querer esses dias, mas, francamente, que M... de figura era aquela para ficar esfregando na cara dela a culpa do avesso desses quereres?! A essa altura, louça lavada, mesa arrumada, alguns da casa na sala a ler ou ver o jornal, outros no computador, provavelmente a navegar no jornal, ela, terminado o chocolate que saboreou como sobremesa, estava P... Sentiu de novo uma vontade extrema de “acabar com a raça dele”. Agora porém, melhor que a gargalhada, vingou-se infantil, jogando deliberadamente no chão a embalagem plástica nada biodegradável que antes embrulhava o doce nada orgânico que acabara de devorar nada educadamente!
Riu-se, satisfeita de si.
Breve e divertida ilusão. Logo em seguida, sem tempo suficiente nem para que o pessoal ao redor notasse a rebeldia, levantou, catou o lixinho e foi adequadamente se desfazer dele. Não durou muito, mas ainda riu sozinha do episódio por uns dois dias.